GRANDES MOMENTOS DAS VIOLAÇÕES DE COPYRIGHT NA MÚSICA
(ou: i believe in terceiromundismo latinoamericano supremacy pra assimilar qualquer coisa e melhorá-la)
o objetivo aqui é falar sobre versões de músicas autorizadas (ou não), com boas intenções (ou não), mas que são excelentes (e em quase todos os casos, melhores que as originais) pra evidenciar a CONTUNDENTE superioridade terceiromundista em incorporar tudo que vem de fora.
imagina você ser um inglês, o seu país ter invadido quase todos os países do mundo e dois séculos depois sua culinária ainda parecer lavagem de porco? não dá pra levar a sério, na moralzinha mesmo.
no início do século xx, o oswald de andrade e toda sua turma modernista buscavam compreender (e porque não, inventar) a cultura brasileira. e pra embasar essa perspectiva, vão se utilizar da antropofagia enquanto uma metáfora do que seria a essência da dinâmica cultural brasileira. não é a toa que uma das frases mais significativas do seu manifesto antropofágico em 1928 seja “só me interessa o que não é meu”.
a antropofagia diz respeito a um ritual muito complexo de alguns povos ameríndios, que definitivamente não tem nada a ver com o canibalismo sádico holydwoodiano do hannibal. mas é inevitável o caráter exótico e sensacionalista que marca a discussão desse tópico, porque demanda pensar em um contexto de alteridade (muito) radical. além disso, tem toda uma construção colonial que usou a antropofagia como justificativa de dominação, ainda que estivesse ligada a contextos e situações muito específicas de alguns povos guerreiros.
mas por que oswald de andrade recorre à antropofagia, uma prática tão controversa? primeiramente porque os modernistas queriam uma expressão autêntica para pensar a cultura brasileira, assim como o romantismo de meados do século XIX já havia resgatado a imagem dos ameríndios, mesmo que de uma maneira bem menos interessante. e segundo, pra causar mesmo: ao usar do caráter exótico da antropofagia, os modernistas chocavam e irritavam uma pequena, mas incrivelmente JECA, elite que produzia e consumia arte no início do século XX no brasil.
apesar de majoritariamente fetichista e apoiada em várias teorias antropológicas da época, o modernismo foi um movimento muito importante para o brasil, especialmente pelo seu legado nas artes. e além disso, podemos considerar o pensamento antropofágico como uma forma muito interessante de pensar e compreender as dinâmicas de apropriação cultural do nosso país, sobretudo pelo passado colonial e na condição periférica do capitalismo contemporâneo.
a discussão das formas de assimilação e sincretismo é tão relevante, que podemos ser ousados e estender o pensamento antropofágico para além do brasil: a dimensão antropofágica também reflete as práticas culturais dos povos latino-americanos.
o povo latino-americano é o viciado em incorporar tudo que vem de fora.
um reflexo das nossas origens ameríndias e africanas - caracterizadas pelo apreço à diferença. para além de as imposições culturais e estratégia de sobrevivência através do sincretismo, a incorporação do diferente foi, e ainda é, uma escolha cultural que está atrelada a toda uma filosofia e concepção de mundo que sempre agrega e abarca o outro.
obviamente o fenômeno de assimilação e sincretismo cultural é muito complexo, mas nesse humilde espaço, queria chamar atenção para todo um charme terceiromundista que o latino-americano exala.
somos vários povos unidos por um passado colonial, golpes de estado financiados pelos estados unidos, vacina para a tuberculose desde a primeira infância e a capacidade de assimilar tudo que vem de fora e, eventualmente, melhorá-la.
foi assim como fizemos com o futebol, o maior exemplo de todos. e nesse mundo corporativo contemporâneo, o latino-americano nos presenteia com um quase um completo desprezo pelas leis de copyright.
não vivemos somente em um grandioso esquema de pirataria no audiovisual (que na era pré-streaming era mais pujante ainda), ou por usar as fotos (não autorizadas) da taylor swift, jennifer aniston e rihanna em quase todo o salão de beleza de bairro. até no suprassumo da precarização das relações de trabalho, os bolos de pote, há uma série de licenciamentos informais e autônomos. não é raro ver sabores de sobremesas indicadas pelas marcas: morango e nutella®️, cookie de oreo®️, dentre outros. o mcdonald’s tem que pagar uma nota pra usar o ovomaltine®️ no mcflurry, mas a dona rosana que faz bolo de pote, felizmente, não.
dito isso, vamos às minhas mais queridas violações de direitos autorais no mundo musical:
#5: TRISTE PALOMITA, ESCUCHÁ (SI TE VAS, EL ROOKIE )
o reggaeton tem todo esse sabor latino, e apesar de vários artistas legais, tem a melancólica autenticidade da comida mexicana feita com um rap10: dá pra comer, mas jamais será uma bela tortilla de maíz. e apesar de amar muito o bad bunny, é difícil respeitar completamente essa indústria do reggaeton do eixo miami/porto rico. o motivo? tem uma vibe do agronegócio que financia o gusttavo lima e zé felipe nas rádios brasileiras.
de certa forma, o reggaeton contemporâneo é a vitória de um projeto de latinidade que a CIA e a carmem miranda queriam - apesar de nos presentar com umas farofas bem boas. por isso, considero que triste palomita foi uma forma muito genial de incorporar o reggaeton sem cair na eventual artificialidade do gênero e conseguir incorporar até mesmo o rap ao panteão da cumbia villera com maestria (que não era tão comum na época). a banda escuchá sempre fez algumas versões da música de outros artistas no início dos anos 2000 — possivelmente sempre além dos limites da legalidade — mas captou muito desse movimento que ainda estava estourando e se tornando uma grande indústria. o escuchá levou para as periferias da argentina esse momento ainda interessante do reggaeton e o incorporou de uma forma muito legal e autêntica, sem precisar forçar sotaque caribenho nem nada.
#4: EU SOU STEFHANY, STEFHANY ABSOLUTA (A THOUSAND MILES, VANESSA CARLTON)
a maior evidência da eficácia de uma versão nacional sobre a versão original é não saber mais a letra original. eu não sei a letra de what makes you beautiful por culpa do nissim ourfali ou que o final refrão de dark horse, não seja “o meu nome né júlia”. no caso de stefhany absoluta, essa transcendência foi sentida não apenas na música da vanessa carlton, como também em relação a um automóvel, o crossfox. se essa versão tivesse sido lançada hoje, a volkswagen provavelmente ia usar muito a imagem de stefhany em os posts de mídia social. mas estamos falando aqui do ano de 2009, em que uma marca (felizmente) nunca sonhou ter uma conta no orkut ou no fotolog. tempos mais felizes, eu sei.
de qualquer maneira, a stefhany acabou fazendo esse grande merchandising gratuito, mas ela também se tornou parte do imaginário do crossfox. apesar de uma aura nefasta, há relatos de vários caos do crossfox decepar os dedos dos usuários, é impossível não entrar no crossfox e não sair por aí cantando a música da stefhany.
#3 FAKE AMOR, MELODY (FAKING LOVE ANITTA FEAT. SAWEETIE)
eu amo as piadas da melody cantar em uma língua desconhecida, pois não são piadas, são a pura e clara realidade. e apesar de não entender nada do que ela canta e ter certeza que ela nunca teve acesso a um coach vocal (apesar dos memoráveis falsetes) as músicas são tão boas, que não tem como resistir a esse grande guilty pleasure nacional. além disso, a versão de faking love, tem a ver com um contexto muito SATISFATÓRIO: a melody é a grande nemesis da anitta. talvez a teoria que se uma suprema surge, a suprema anterior começa a se enfraquecer seja verdade mesmo. o grande último hit da anitta orgânico e popular (vai malandra) foi no já longínquo 2017. melody, por sua vez, vem nos últimos anos criando hits muito mais legais que as bombas nucleares que anitta anda lançando por aí pra agradar o mercado gringo. e mesmo assim, a anitta ainda não conseguiu lucrar com a brasilidade em si, vem usando a vantajosa burrice do estadounidense de achar que a capital do brasil é buenos aires e forçando um sotaque caribenho pra fazer música genérica e chata. melody, por sua vez, vem apostando nos ritmos brasileiros, especialmente o piseiro, e na completa falta de ética empresarial do seu pai para criar completas obras de arte. a versão de positions da ariana grande é muito boa, mas essa aqui em que ela usa uma música da arqui-inimiga, é demais. são CAMADAS de drama e intriga que agregam muito à canção.
#2: SOMOS UM SÓ, DESEJO DE MENINA (KATE BUSH, WUTHERING HEIGHTS)
a kate bush que atualmente está ganhando muito dinheiro por conta do boom de runinng up that hill, mas eu sempre penso como wuthering heights é subestimada — apesar de existir cover até do angra. ela foi escrita por kate quando ela tinha apenas 18 anos é baseada na única obra publicada por emily brontë, o morro dos ventos uivantes. e a kate conseguiu trazer esse clima trágico da relação entre de catherine e heathcliff, mas ela não foi a única. o brasil tem uma dívida com a diva alba suany e com a banda desejo de menina. e com todas bandas de forró que fizeram versões incríveis de hits internacionais. somos um só é uma grande versão não apenas pela letra, mas também pelos vocais e os solos de guitarra. essas versões me lembram verões no sul da bahia no final dos anos 2000. gostava muito dos dvds que eram vendidos nas áreas litorâneas: o único jeito das pessoas do sudeste sentirem um gostinho do circuito da cultura e popular no nordeste, especialmente a cena de forró, e do norte com o brega pop/zouk/calipso. amo muito essas gravações desses grandes shows com as milhares de bandas existentes na época. dá pra ter uma pequena noção da dimensão do alcance popular de música que era independente (!!!).
it’s kinda a bummer que alguns artistas que começaram nesse contexto viraram letristas de artistas de um neosertanejo chatíssimo ou simplesmente alguns expoentes dessa cena (safadão, simone e simaria) se tornaram artistas muito básicos. mas eu fico com esses momentos de glória dessas versões forró, que são ridiculamente boas.
#1: QUALQUER VERSÃO INSTRUMENTAL ANDINA
amo como as flautas e instrumentos tradicionais andinos são capazes de me transportar para o altiplano. e eu nunca estive lá. esse álbum (musica con pasado y un toque andino) é um dos meus favoritos. pelas músicas escolhidas, pelas traduções do títulos das canções e também pela arte da capa, com esses efeitos do word nos títulos. lembro muito de alguns bolivianos que vendiam álbuns de música andina aqui na praça 7,em belo horizonte. todos eram muito legais e vendiam coletâneas de versões e também músicas próprias. existem versões para quase todas as músicas possíveis, mas em geral, as coletâneas tem essa energia maravilhosa de uma seleção de músicas feito pelas rádios locais para pessoas com mais de 60 anos, que geralmente são as trilhas sonoras de partidas de sinucas em botecos dos tiozões. é claro que essas versões não são a única coisa da música andina. é como se fosse uma porta de entrada de uma cena musical que é muito diversa, mas apesar ser uma coisa de iniciantes (uma coisa meio música instrumental andina for dummies) sou apegada a essas versões porque elas são muito cativantes. é uma combinação perfeita da música pop e os instrumentos andinos tradicionais.
e simplesmente NÃO HÁ LIMITES: é possível andinizar QUALQUER canção e ritmo.
BONUS TRACK: AVE MARIA TECHNO REMIX
apesar de não ser uma violação autoral, não consigo pensar em nada mais GRACIAS A DIOS NACÍ EN LATINOAMÉRICA do que esse vídeo. para além do EXCELENTE remix, eu fico verdadeiramente emocionada com as imagens, porque lembram a casa da nossa avó ou uma tia carola. e pode ser também uma montagem de um bom dia no grupo da família no whatsapp. nem o embranquecimento da nossa senhora e do menino jesus foi capaz de me irritar (muito). a estética é 100% a cara da internet em 2008, e possivelmente editado no windows movie maker num windows xp home edition (se eu estiver errada, eu não quero saber). mas além disso, dá a sensação gostosa de quando vejo qualquer outra expressão de um catolicismo popular. pra mim esse remix de ave maria é quase uma folia de reis em uma cidade com menos de vinte mil habitantes. é o culto ao gauchito gil na província de corrientes. ou os paraguaios cultuando a san la muerte. é um bingo em uma quermesse do bairro no brasil. é uma encenação da paixão de cristo que acaba saindo do scrip e eventualmente se torna uma grade porradaria.