A TRAGÉDIA DO GOLFINHO DE SANTA TERESITA
(ou: mother! e a perversão de uma das grandes fábulas do antropoceno)
para o meu completo azar, tenho a mente permanentemente destruída pela indústria cultural. vivo como um dos mais miseráveis dependentes químicos aproveitando cada migalha de entretenimento que exista. além da motivação principal em não produzir uma mera fração de pensamento sobre a minha própria vida, adoro poder me deleitar em qualquer ultraprocessado radioativo do audiovisual pra vislumbrar um pouquinho de sentido nesse nosso mundinho de meu deus.
nos últimos meses, meus três últimos neurônios ficaram vidrados em assistir qualquer filme sobre o fim do mundo. não sei se estou apenas tentando me acostumar com um futuro coletivo horrível ou até mesmo me preparar pra enfrentar catástrofes (o cinema é o meu telecurso 2000), mas uma das maiores surpresas ao passar esse período meio maníaco, foi ter reassistido o filme mother! (2017) e chegar à conclusão que o darren aronofsky deveria estar na prisão!!!!!!!!
mother!: era melhor ter ido assistir ao filme do pelé
não sou necessariamente uma hater do aronofsky, mas temos que admitir que a melhor versão dele é plagiando algum artista asiático. no entanto, nem todos os crimes contra os direitos autorais que este senhor já cometeu na sua vida de diretor e roteirista, nem os pavorosos the whale (2022) e noah (2014), chegaram perto do que ele fez em mother! (e olha que genuinamente amo demais a cena da jennifer lawrence gritando A PIA NÃO ESTÁ CHUMBADA, SAI DE CIMA DA PIA).
não se passaram sequer dez anos desde o lançamento e é meio absurdo como o filme envelheceu mal. um envelhecimento mais assustador do que príncipe charles ou qualquer membro da família real britânica depois de gerações e gerações de endogamia. acho que o meu problema é que nenhum filme sobre o colapso da humanidade deveria se desvalorizar tão rápido, sabe? o mundo está acabando, meu irmão!!!
poxa… você vê a bagunça climática e pensa não foi tão absurdo assim o jake gyllenhaal em o dia depois de amanhã (2008) queimando os livros da biblioteca pública de nova iorque porque aceleramos a chegada da próxima era do gelo. conflitos por conta de combustíveis fósseis e motoqueiros em mad max (1979)? é como se fosse a crise climática de meia idade do industrialismo, tal qual um motoclube composto por quarentões depois de um divórcio traumático. waterword (1995)? o nível do mar está subindo, não está? toma sua verossimilhança aí. e mesmo sendo uma versão de mad max na água, andar por aí de jet ski parece ser mais legal do que enfrentar tempestade de areia ou enfrentar quadrilhas de motociclistas que usam cocaína demais. e quem não ficaria verdadeiramente deprimido igual a kirsten dunst em ter que conviver com o lars von trier ao filmar melancholia (2011) e assim aceitar o fim do mundo da maneira mais serena possível, mesmo depois de tanta apatia?
não existe mais nada de absurdo no mundo. TUDO é possível, QUALQUER metáfora é válida.
e nesse cenário em que o tempo está aí pra dar razão pra obra do audiovisual mais desvairada que seja, mother! conseguiu falhar feio. pra não ser injusta, as técnicas de edição e filmagens são boas, além da performance dos atores e tudo mais, mas infelizmente não dá pra fingir que o filme não seja um completo punhetaço intelectualoide do aronofsky.
mother! é uma fantasia narcisista americana, democrata até o talo, sobre a fundação e declínio da alta-roda dos estados unidos, que poderia ser razoável se não fosse essa pretensão de querer ser universal. é democrata porque não rejeita a crise ambiental, mas faz a pior crítica possível ao colocar todos os terráqueos no mesmo balaio da culpa pelo desequilíbrio do meio ambiente. essa culpa que que desagua nessa coisa voluntarista querer salvar a natureza usando a porra de um canudo de alumínio ou fazer xixi no banho como se fosse um grande ato de redenção enquanto tem bilionário por aí andando de jatinho poluindo mais do que a soma de continentes.
mas se fosse somente isso, por mim eu não ligaria, porque como diz a shakira, no puedo pedir a los olmos que entreguen peras. o que deixou agoniada foi a completa perversão de uma das grandes histórias do antropoceno… a história do golfinho de santa teresita.
provincia de buenos aires, santa teresita, 2016
o fato que inspirou a cena clímax em mother!, foi inspirada em um ocorrido no litoral bonaerense em santa teresita. uma praia meio feia como quase todas as praias argentinas, mas que é uma feiura simpática porque apesar da falta da beleza estética, da água excessivamente gelada, da areia podre, eles foram compensados pela presença de animais da fauna marítima austral que simplesmente estão se fodendo se os banhistas estão na área deles, como pinguins e leões marinhos.
mas apesar de ainda que acostumados com essa fauna marítima, ninguém estava pronto pra lidar com um golfinho. e não era qualquer golfinho. era um golfinho bebê.
você sabe o quanto eles são lindos? o quanto eles se parecem um desenho animado? pense aí nos níveis de oxitocina, serotonina e endorfina a torando nesse grande mousse aquoso banhado em descargas elétricas que é o cérebro humano ao ver esse bicho? a chegada desse encantador espécime simplesmente deflagrou uma reação muito natural de qualquer sociedade humana: o desejo de querer mais.
grande parte dos banhistas não se contentou em ver o golfinho bebê nas águas; era necessário senti-lo em suas próprias mões e fazer um esforço para eterniza-lo tirando fotografias, fazendo vídeos. infelizmente, todo o entusiasmo ao ver um animal tão belo e esplêndido, uma animação da disney em live-action, levou a uma enorme tragédia: a sua morte.
no meio do alvoroço todo, da urgência em aproveitar cada momento em contato com um ser tão mágico, o coitado do golfinho filhote ficou tempo demais fora da água em um dia de calor do caralho e ele não aguentou. muito possivelmente ele foi cozido na sua couraça de gordura pelo simples fato do seu habitat não ser as mãos de hominídeos em um absoluto estado de deslumbre num dia de calor, mas sim das águas frias do atlântico sul.
apesar de ser muito fácil apontar esses banhistas como as pessoas mais idiotas do mundo, eu não acredito que o neném golfinho morreu somente pela maldade humana ou pela mera burrice coletiva mas, sobretudo, por uma cruel perversão do próprio encantamento, arrebatamento e frenesi que ele proporcionou aos banhistas.
a morte do golfinho de santa teresita não é apenas acidente de pessoas facilmente impressionáveis, é uma tragédia do gostar demais de algo até matá-la. e muitos anos depois, apesar do golfinho de santa teresita ter virado um meme (absolutamente mórbido, eu sei) que brinca sobre a enorme propensão dos argentinos em simplesmente poder causar um desastre a partir do encantamento (essa filmagem do messi sendo um golfinho de santa teresita é um dos exemplos dessa teoria).
mas além dessa euforia virulenta, essa eu acho que a tragédia do golfinho é um evento muito próprio do antropoceno pelo elementar motivo de que a nossa civilização está fundada em achar que o não-humano está aí pra ser unicamente disciplinada, coletada, analisada, domesticada e apreciada por nós.
vivendo e morrendo no antropoceno
a razão pelo qual o episódio do golfinho não tem nada a ver com alguma piração de um democrata estadunidense de querer jogar a culpa do desequilíbrio ambiental em todos os habitantes do planeta, usando até uma asquerosa retória neomalthusiana, é que o antropoceno não é o apocalipse e golfinho de santa teresita não é jesus cristo.
os antropólogos estão berrando há pelo menos uns 20 anos muito explicitamente o fato que a humanidade não vai acabar com a crise climática. o antropoceno não é o fim da humanidade, ninguém vai ser julgado por um tribunal celestial pra saber o que será feito do nosso espírito. a vida real não são as visões de um maluco que fazia parte de uma seita meio hippie na antiguidade que gostavam de perturbar os oficiais romanos que queriam apenas viver na putaria com seus namoradinhos, tratar mulheres mal, pichar muros e fazer guerras.
o verdadeiro problema do antropoceno não é a erradicação da nossa espécie, mas criar um novo mundo a partir dos escombros, que pode ser algo pior do que a gente vive ou, mais dificilmente, algo melhor do que o sistema ferrado, triste e cruel em que a humanidade está inserida.
o erro do aronofsky ao atrelar a crise ambiental a essa coisa cristã como se fosse um ousado cálculo teórico além de ser uma coisa tão pueril é também um sintoma de falta de caráter mesmo!!! porque nem dá pra acusar o aronofsky de ser alguém sem recursos pra ler um livro do bruno latour, hein. o bebê da jeniffer lawrence sendo morto pela humanidade é só uma encenação ruim da paixão de cristo (e o mel gibson já fez esse filme sem perder a chance de ofender vários povos pra isso).
a comoção pelo golfinho em santa teresita não tem nada a ver com cristo. assim como a patti smith, o golfinho não morreu por pecado de ninguém; foi apenas uma vítima de uma política da modernidade que opera na nossa vida social, de achar que animais são objetos, não sujeitos. além do problema dos turvos limites entre a a burrice e ingenuidade, marcados por uma ideia (aí sim, muito monoteísta, com ênfase no antigo testamento) de que a natureza existe para nos servir.
e se isso funcionou no holoceno e a humanidade foi capaz que mesmo de forma abissalmente desigual, criar tecnologias e conforto, nesse momento em que as possibilidades estão começando a se esgotar, as limitações do planeta estão se tornando tão explícitas que revela que o descontentamento central no antropoceno é querer e não poder: é lidar com as limitações brutais do meio ambiente.
fomos iludidos a vida inteira sobre uma versão de um planeta que existiu pra um grupo muito seleto na dinâmica global, do qual a absoluta maioria não aproveitou e que jamais vai aproveitar porque as consequências da farra industrial já estão se materializando a cada nova tragédia.
espero que os kendalls roys, o careca horroroso da amazon, o resto de placenta que é o elon musk continuem aproveitando poder colher tulipas de manhã nos países baixos e ir jantar algo no japão, sendo o dia mais chato da semana deles, porque o restolho da população simplesmente vai continuar vivendo para, milagrosamente, conseguir sobreviver. a justiça terrena vai chegar bem tarde para esses filhos da puta: eles vão sofrer, mas infelizmente, serão os últimos.
reitero que pra mim seria muito mais fácil um tribunal celestial vir julgar a todos, porque se tem um cenário que hoje é difícil de imaginar, é o que as tragédias vão nos fazer melhores.