NARRATIVAS FAMILIARES #3
(ou: meu avô que eu vi morrer, minha avó enquanto usuária de canabidiol e um banheiro horrível)
eu gosto muito da família do meu pai porque objetivamente eles são mais interessantes do que a família da minha mãe. a nossa história familar foi marcada pela disfuncionalidade, problemas financeiros e ausência de estabilidade psicológica, mas jamais faltou violência intrafamiliar e motivos pra desenvolver transtornos pós-traumáticos em diferentes gerações.
e de brinde, temos ainda (vergonhosamente, diga-se de passagem) a perpetuação de preconceitos.
meu abuelo arnaldo, foi um grande alcoólatra e tabagista falecido aos 66 anos em plena virada do século xxi. ele viveu o equivalente a uma expectativa de vida de alguém nos anos 1970 em 1997 (!). pois é. tenho muitas lembranças do meu avô de quando fomos morar em misiones, mas a que me marcou foi ter assistido a morte dele.
estávamos vendo televisão e ia passar o primeiro capítulo da melhor novela espírita da globo, a viagem, na tevê argentina. quando do nada meu avô teve um infarto fulminante e xáu bláu, foi de base. eu tinha seis anos, tive que correr pro kiosko mais próximo pra poder pedir ajuda, porque estávamos sozinhos em casa e minha mãe estava tentando prestar os primeiros socorros. meu avô naquela época já estava muito debilitado. era uma tripa de gente vivendo a base de carne defumada, mate e fernet. uma mistura louca de muito sódio, gordura saturada, cafeína e álcool. a morte ia ser muito rápida mesmo.
eu tinha seis anos e obviamente não entendi nada do que estava acontecendo, mas o trauma é pra sempre. é muito chocante ver alguém morrendo, em especial seu avô. e eu era muito apegada a ele, porque possivelmente meu avô foi muito melhor companhia pra mim e pro meu irmão do que ele foi para os seus próprios filhos (coisas de uma velhice mergulhada na completa culpa parental).
ele foi muito cedo. e só meu irmão e eu de todos os vários primos chegamos a conviver com ele, mas não quer dizer que não transmitiu nenhum legado pra toda a família.
e ele transmitiu vários, dos comportamentais aos genéticos. temos circulando tendência ao alcoolismo, tabagismo, jogos de azar, calvície (que pulou unicamente o meu pai dos quatro irmãos, viva a genética guaraní da minha avó; infelizmente o meu irmão foi acometido pelo gene da calvície antes dos 30) e concepções muito xenofóbicas que moldaram o meu imaginário sobre certas nacionalidades.
meu avô nasceu numa colônia alemã das várias que existem em entre ríos e um dos maiores ensinamentos que ele se orgulhava de espalhar por aí era que ninguém deveria confiar em nenhum polonês. em geral, todos acham que o racismo e xenofobia na argentina são direcionado exclusivamente a gente indígena e afrodescendente, mas eu sempre relativizei essa concepção porque fui criada com meu avô… alguém que tinha pavor de quase toda nacionalidade que não fosse da terra que o pariu e dos seus ancestrais incestuosos.
mas o ódio do meu avó pelos poloneses é uma coisa grotesca. tem basicamente ZERO motivos. será que era uma rinha religiosa entre católicos e luteranos? jamais saberemos, só posso falar que era um ódio gratuito, irracional, mas muito potente. é vergonhoso admitir, mas eu nunca consegui confiar no papa joão paulo ii (e infelizmente, ele era um otario mesmo) e no lewandoswski, especialmente quando ele jogava pelo bayern ou quando ele ainda ousa dar alguma indireta para o messi.
espero que meu avô esteja orgulhoso do seu legado de intolerância, eu só posso ter vergonha mesmo.
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em geral a noção que sofrimento é necessário pra aprender me dá muita preguiça, porque o que não falta é sofrimento e a absoluta falta de sabedoria em geral. mas não dá pra negar que a dor nos obriga a fazer coisas que jamais seríamos capazes de tolerar em condições normais de temperatura e pressão.
a minha avó por exemplo, tem um problema crônico de dores ósseas que chegou a um nível tão insustentável que ela apelou pra usar canabidiol. foi um choque pra família ela ter aceitado o tratamento porque a velha é quase o nixon nos anos 70: se ela pudesse, ela mataria todos os usuários de qualquer tipo de droga.
pra ter noção da personalidade dela, o programa que ela mais gosta é polícia 24 horas. e eu penso bastante que se chegasse o sinal da bandeirantes em misiones, ela piraria com o datena. ela é 100% punitivista e vê a adicção como um problema moral (talvez tenha sido o trauma de ter sido casada com um alcoólatra por quase quarenta anos).
sem contar que alguns vizinhos e meus primos iam fumar maconha no galpão da casa dela. e como ela mora sozinha, ela tinha medo na mesma proporção também ficava irada. ela fazia a sua antiga cadela ramona (se existir um nome melhor pra uma cachorra eu desconheço) ir pra cima da garotada, bem como o uso de algumas armas brancas. uma mistura de medo, busca pela sobrevivência e o completo ódio e preconceito que ela nutre por gente drogada e meio vagabunda.
isso porque ela também se tornou meio radical em relação à política, tipo um incel que virou nazista depois de frequentar em demasia um grupo do discord com outros nerds ressentidos e tristes. enfim, o que era um anti-peronismo minimamente razoavél e ódio a políticas minimamente liberais e progressistas, se tornou um pesadelo ideológico: ela ama o maurício macri e a galera da direita. ela ainda não chegou no estágio de elogiar a ditadura… mas talvez não esteja tão longe dela mandar um que vuelvan los milicos!!!
mas apesar dessa radicalização (muito próprio da idade, pra ser honesta) minha avó lita é uma senhora complexa.
apesar de ser conservadora na dimensão política, dá pra ver de longe que minha avó nunca gostou do papel de dona de casa, como alguém conservador de verdade gostaria. é um ponto que eu admiro bastante nessa senhora, porque ela é o anti-estereótipo da vovó boazinha, quem em geral é a dona benta do sítio do pica-pau amarelo.
de algum jeito muito estranho, ela é uma rebelde.
obviamente uma coisa normal pra quem não teve opção na vida que não se casar antes dos vinte anos. por isso acho que ela ser uma senhora muito ressentida que constrange todo a família falando besteira como uma vingança pessoal pela vida que ela não teve. as ofensas gratuitas da velha são babilônicas e ela consegue destruir a alma de qualquer um com uns dois comentários. infelizmente, é muito engraçado, mas só se você não for a vítima da vez.
eu gosto de pensar que o germe dessa rebeldia foram essenciais pra que ela aceitasse usar maconha no alto dos seus quase 80 anos, apesar de uma vida odiando os nóias e vagabundos que fumam maconha.
mas a real é que foi a necessidade mesmo. a necessidade de não precisar ficar com um celular pendurado o tempo todo nela se ela travasse o quadril e algum tio tivesse que socorrê-la.
good for her.
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caralho, existe classe média mais pau no cu do que a classe alta emergente? eu duvido. não dá pra esperar nada de bom da classe média em geral (btw, a única ok é a classe média baixa, tipo a grande família). mas os emergentes dessa classe média alta são os piores, especialmente pela ausência de capital cultural e o materialismo bem imbecil.
talvez eu esteja sendo um pouco classista, mas se você vai ascender de classe social, por favor, use a porra do dinheiro de uma forma menos idiota?
a história que quero contar é de ascensão social e da ausência de um assento de vaso sanitário. uma história que resume demais a classe média alta emergente brasileira: a história de um banheiro horrível enquanto um demarcador de classe e subjetividades.
o contexto geral é de uma classe média alta brasileira formada nos anos 70 por gente que chegou do interior, fez a vida na capital e que simplesmente sucumbiu ao consumismo de alguns itens específicos (automóveis) como status social. é a história de uma parte privilegiada da minha família materna.
uma senhora torrou todo o dinheiro advindo do funcionalismo público (que oferecia uma gama de benefícios que não existe mais) do meu tio-avó pra suprir todas as vontades dos seus filhos que foram vítimas de uma educação duvidosa e opressora, se tornando pessoas questionáveis demais. mas sabe o problema? por mais que essa senhora comprasse um carro de luxo pra todos os filhos todos os anos, inúmeros equipamentos de cozinha, freezers, um forno elétrico fodão e o escambau, o banheiro da casa dela sempre foi uma coisa triste.
sabe, uma das marcas pra deixar em evidencia que alguém venceu na vida se concentra em ter um bom banheiro. pequenos luxos como não se preocupar com o lorenzetti esturricado no inverno, uma boa descarga, azulejos chiques, um box de vidro, um armário com muitas prateleiras pra ser abarrotados de tranquilizantes, listerine e quiçá uma escova elétrica dão o tom de uma efetiva ascensão social e a separação de mundos entre a classe média alta e o restante da população.
o banheiro é essencial pra compreensão da classe social, mais do que as aparentes ideologias e visão de mundo que qualquer pessoa possa defender. quando uma pessoa decide investir no banheiro, você pode saber que ela transcendeu: ela deixou de ser um mero emergente pra ser uma classe média alta de verdade.
em resumo: o banheiro é importante, porra. o estado do banheiro é o core da identificação de qualquer classe social. e, tristemente, essa tia-avó poderia comprar qualquer coisa e optou por ter um banheiro de merda.
tenho flashbacks de guerra de visitar o banheiro dessa gente além de alguns aspectos imperdoáveis do banheiro (um bidet que não funciona, a falta de um suporte adequado pra colocar o papel higiênico, ausência de escova sanitária), mas nada me despertava o completo e profundo horror que é a ausência de uma tampa e assento do vaso sanitário.
o resto dá pra improvisar, sabe? mas não com o assento/tampa. além do que zilhões de germes voando com uma mera descarga por não ter tampa, não ter um assento é basicamente voltar ao paleolítico dos banheiros. o frio e a eventual umidade da cerâmica na sua bunda é a marca da completa selvageria doméstica (eu como uma quase-antropóloga não deveria usar esse tipo de termo, mas não consigo pensar em outra coisa, peço desculpas e pretendo melhorar em um futuro próximo).
a falta de um assento e tampa sanitário é um atentado contra a noção de lar e todo o conforto e higiene que um banheiro nos oferecer. além de mostrar como as aparências enganam. por isso, felizmente, o banheiro está aí pra dizer verdades.
o que adianta ter roupa cara, carro caro, uma tevê de 60 polegadas se no inverno você está fazendo o seu o bumbum levar um choque térmico ao encostar na cerâmica em um momento fundamental da saúde humana que é excretar impurezas?
obs.: que fique claro: todos os banheiros merecem respeito, mas pra mim é uma marca do provincialismo econômico e até mesmo uma pequenez espiritual não investir dinheiro no banheiro quando se tem condições. imagina ficar mais de vinte anos trocando de carro todos os anos e não se importar em ter o mínimo de conforto no santuário da própria higiene pessoal? imperdoável.