NOTAS DE UMA ONTOLOGIA DO PRESENTE #1
(ou: usando o substack como um lugar seguro pra poder reclamar sozinha)
poxa, de verdade... quero esclarecer que não quero ser ingrata com as maravilhas do mundo contemporâneo. eu realmente aprecio grandes aspectos da nossa sociedade (bugigangas da china, fancams, o novo álbum da charli xcx, pirataria, viagens longas de ônibus, mantinhas de microfibra), mas imagina estar minimamente bem vivendo esse clima final de festa que o neoliberalismo está aí nos enfiando goela abaixo?
eu sei que felicidade não existe, o que existe na vida são momentos felizes, mas mesmo entendendo essa grande lição de vida do senhor odair josé, é difícil ver o nosso cotidiano sendo devorado pela precariedade no trabalho, nas relações, na nossa cultura, no nosso meio ambiente, na vida social como um todo. talvez seja apenas inveja de uma condição mental minimamente funcional, mas o meu humor frequentemente está no mesmo estágio do eustáquio, o tutor do coragem (o cão covarde).
será que aceitando animicamente a terapia cognitiva-comportamental vou melhorar meu humor? entro pra alguma seita, grupo de jovens cristãos de parede preta? um curso de cerâmica com madames entediadas? trocar pela enésima vez a medicação pra ansiedade? ou talvez eu deva apenas me enfiar num beco do baixo centro pra cheirar cola de sapateiro até esquecer meu nome?
apesar dessas várias opções, decidi fazer o mais seguro: reclamar na internet.
você vai me desculpar o clima pesado na sua caixa de entrada; a falta de distanciamento histórico, a curadoria temática excessivamente viciada nos meus próprios monólogos internos, as indiretas pessoais totalmente desnecessárias. mas de vez em quando, assim como um desabafo sobre um jogo ruim do nosso time de futebol, um bom rant pode não necessariamente curar, mas humildemente, remediar onde dói. sem contar que é menos vexatório — ao menos pra mim — do que sair na rua gritando sozinha afetando negativamente o cotidiano de trabalhadores desavisados.
enfim, uma boa leitura.
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life in (micro)plastics, it’s fantastic!
adoro todo o conceito e toda a discussão em torno do ciborgue. a minha maior referência obviamente teria de vir de um dos mais geniais e legais filmes do mundo: o robocop, o policial do futuro (1987) — deixo claro que sou uma fervorosa stan do primeiro filme da série, não gosto das sequências e menos ainda da repugnante refilmagem do padilha. pau no cu do padilha. fé que um dia ele pague pelos crimes hediondos cometidos contra o audiovisual.
voltando ao robocop, para além do excelente filme e impecável em termos de capturar aspectos fundamentais da biopolítica neoliberal, temos um design que é uma completa demência. sou fascinada pelo robocop porque ele tem essa coisa que nem o terminator tinha de ser uma representação perfeita do híbrido homem-máquina. às vezes, a literalidade é muito legal.
enfim, por achar o robocop muito caralhudo a minha decepção com a noção do ciborgue na realidade é totalmente compreensível: o mais próximo de um híbrido muito literal entre técnica e biologia que vamos chegar num curto prazo é uma porcentagem muito absurda de microplástico cancerígeno no nosso corpo, tá ligado?
sei que as decepções fazem parte da vida, mas era necessário ser tão vulgar e perigoso pra nossa saúde assim?
o papo de microplástico não é nenhuma novidade para as primeiras grandes vítimas: o ecossistema marítimo como um todo. as tartarugas, os peixes, as aves marinhas. mas a notoriedade que o tema está ganhando tem mais a ver com notícias que estão sendo encontrados microplásticos não apenas em nossos alimentos, mas em nós mesmos. risos.
já encontraram microplástico em placenta, no coração, saco escrotal, pênis. e a lista só aumenta a cada pesquisa.
já podemos nos considerar matéria orgânica e um amontoado de polímeros? até porque não dá pra fingir que não esperávamos. quem nunca tomou um cafezinho num copo de plástico de procedência duvidosa? as pessoas realmente gostam muito de comida japonesa e frutos do mar (criados no que é basicamente o nosso depósito informal de plástico). e muito possivelmente você já jogou água fervendo num pote de cup noodles e dá pra sentir que há algo errado nisso, apesar de ser uma iguaria do mundo dos alimentos radioativos.
por isso, ao menos pra mim, dá pra aceitar que um saco escrotal esteja lotado de BPA. é a vida. mas pessoalmente, a minha experiência perturbadora com os microplásticos é que estamos vendo o aparecimento deles em rochas recém formadas.
caras, desculpem a absurda e completa ignorância especialmente a galerinha das geociências que já meio tentaram me explicar que isso era previsível. mas isso não é errado? como assim a natureza já incorporou microplásticos como matéria prima? tipo... é claro que os processos biogeoquímicos têm uma dinâmica ininterrupta, mas não era pra ter demorado um pouco mais pra que isso acontecesse?
os lixões de polímeros ao céu aberto não tem nem mais de cem anos direito boiando nos mares?? e os microplásticos já estão no cerne da dinâmica do planeta assim tão gratuitamente? a primeira sacola de plástico sequer já se degradou completamente mas, tipo, já temos rocha de plástico? desculpa, isso me preocupa mais do que ser um decepcionante robocop de polímeros.
não quero cair aqui no ecofascismo, ao falar que a humanidade é um completo lixo para o planeta, até porque temos aí povos originários provando que os seres humanos viveram sem ter destruído o planeta por milhares e milhares de anos (e sobretudo, criar ambientes junto dos ciclos da natureza), mas é de foder o cu do palhaço como o industrialismo cagou o planeta em pouco mais de dois séculos, sabe? está sendo muito difícil não querer ir pra uma choupana nas montanhas e viver das coisas que a natureza deu pra gente.
ROCHA DE PLÁSTICO? desculpa, jamais vou aceitar.
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we’re so back (o século xix): trabalho precário, ludopatia, prostituição, tabagismo
o novo álbum da taylor swift não me pegou. a minha decepção com o the poets tortured departament (2024) é a pretensão de querer ser cool da nossa loirinha mercenária, reconhecidamente a pessoa mais básica do mundo. apesar de umas quatro músicas maneiras, o álbum tem vários momentos muito baixos que foram a fonte de vários chapiscos, mas sem dúvida romantizar o século xix (mas sem racismo, viu, gente) foi um dos momentos mais sem nexo num álbum que tem um tattooed golden retriever, pra se referir a um inglês de caráter duvidoso em estado avançado de decomposição aos trinta anos.
mas queria deixar claro pra taylor, minha amiga pessoal imaginária, que ela não precisa imaginar o que é viver no século xix: nós meio que estamos nele.
é só dar um giro no instagram pra ver que apesar de todos os avanços das técnicas, do elon musk que não sabe fazer nem um carro direito, mas que está querendo enfiar um chip na sua cabeça, vivemos num mundo que o ethos do mais sórdido das primeiras fases do capitalismo industrial.
é gente investindo seu suado dinheirinho seguindo conselhos de coach, trader, primo rico e dos malucos do bitcoin. gente sendo totalmente ludibriada pela ambição fomentada por um bando de ordinários e charlatões que se tornaram gurus na vida de muita gente. uma galera tão isenta de qualquer moral, que fariam os bicheiros do rio de janeiro ficarem constrangidos pela falta de códigos.
sem contar no fenômeno mais nocivo dessa nossa ilustre época: o renascimento da ludopatia.
em algum grau, estão todos em algum estágio de dependência de jogos de azar. é aposta esportiva, tigrinho, o escambau. tudo publicizado não por um barrigudo com cara de mafioso, alguém que você teria MEDO de ficar devendo uns trocados, mas por influencers, esportistas, pessoas da mídia em geral. aquele rolê do seu bisavô que era alcoólatra ter perdido a própria casa em casa de aposta? já deixou de ser vintage e destinado apenas a gente com tendência a ter uns cinco vícios concomitantes e foi ampliado a um público infinitamente maior de praticamente todas as faixas etárias.
outro aspecto totalmente doentio dos dias atuais é a normalização absolutamente irresponsável da produção de conteúdo adulto (uma produção pornográfica “autoral” mais desregulada do que a já muito questionável indústria pornográfica). ou de outra espécie de cafetinagem virtual com a existência de aplicativo pra encontrar velho gagá asqueroso pra ser o infame sugar daddy.
tudo isso sendo publicizado como se fosse um anúncio de pasta de dente sendo vendida pra mulheres muito jovens como uma forma de alcançar a independência financeira.
nesse âmbito da propaganda de sobrevivência destinada às mulheres do capitalismo tardio, temos também a popularização da figura da tradwife, que para além do fanatismo religioso, infelizmente não entenderam que o problema delas é com a dupla/tripla jornada de trabalho da mulher, não necessariamente com o feminismo (e que daqui há poucos anos vão ter uma surpresinha quando forem trocadas por seus parceiros por uma versão mais jovens delas).
outro aspecto muito interessante é a volta do tabagismo para a juventude, mas claro numa roupagem moderninha. estão todos fumando pen drive com níveis absurdos de nicotina. a novidade é que tá sendo consumido por gente que sequer cogitaria em se tornar tabagista, porque não há aquele ônus do tabagista tradicional (ficar com cheiro de cinzeiro, ter que sair dos ambientes fechados pra fumar, gente falando que você está se matando lentamente, que vai morrer no hospital que nem o tio marcos). o vape é um dispositivo que possibilita fumar em praticamente qualquer lugar, a qualquer momento, sem contar a sensação de estar consumindo uma guloseima, já que é saborizado.
e além do problema de saúde dos nossos jovens, temos aí um problema estético: a falta de charme do vape. sinceramente? uma criança viciada em vape jamais terá 1% da mística de uma criança fumando cigarro. você acha que o bebê fumante da indonésia teria o impacto que ele teve se ela estivesse fumando vape? tenho certeza que não.
perdão pela palhaçadinha de péssimo gosto, mas é sério. é chocante ter crescido numa era que a indústria tabagista realmente teve que encolher o próprio rabo e sobreviver apenas do simples e puro desespero do vício, da publicidade involuntária feita pelos clássicos do cinema francês e das personagens de mad man sem poder recorrer ao mercado da publicidade propriamente dito. em menos de dez anos desde o surgimento do sal de nicotina feito pela juul, a tecnologia que possibilitou ingerir nicotina de um jeito supostamente menos prejudicial, já temos uma massa de fissurados em crescimento exponencial.
são décadas de campanhas antitabagistas jogadas no lixo. uma loucura.
não que seja uma novidade a tecnologia se tornar uma forma de burlar a legalidade, mas que não é de um jeito legal ou para um bem comum como o torrent ou o z library. o caso das apostas e jogos do tigrinho é uma completa sacanagem com a nossa própria legislação e uma tiração de onda com alcance do poder público em poder fazer algo. existe toda uma burocracia do mundo digital que torna tudo ineficiente e moroso pra regular e gerir o uso de aplicativo ou de site de apostas. tipo, no passado os governos dos estados unidos precisaram dar golpes de estado pra poder implantar esse tipo de políticas pra poder destruir algum aspecto da soberania nacional e popular, sabe?
não que eles não estejam ferindo a soberania de países com golpes de estados até hoje (muito pelo contrário), mas a ajudinha de uma alguma empresa moderninha do vale do silício com algum projeto muito inovador pra destruir algum nicho da economia formal do país (inclusive, o próprio meio que vos os dirijo a palavra está inserida nessa economia), cagando em cima da constitucionalidade. numa realidade que é fundamental pra forçar a desregulação de uma já muito anêmica noção de seguridade social que nós ainda possuímos e que é último pilar que garante que o nosso país não vá pra puta que pariu de uma vez por todas.
e apesar de todo o clima de desregulação e de precariedade do início da era industrial, infelizmente a solução de todos esses problemas não está no próprio século xix.
sair por aí fazendo enormes revoltas populares, colocar alguns bilionários enforcados em praça pública talvez seria um começo muito humilde e necessário pra que todos possamos usufruir de direitos básicos e viver numa sociedade minimamente justa. o problema é que vivemos em uma época que o meu vizinho com um renaut kwid realmente tem MEDO quando pinta o assunto de redistribuição de riquezas e renda.
temos o tecido social cada vez mais estraçalhado que inviabiliza uma simples mobilização coletiva e a própria percepção da sua condição individual enquanto um FODIDO (não aguento mais que qualquer zé mané achar que tem muito em comum com um bilionário boer herdeiro de mina escravocrata).
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democracia, cinema e café: discutindo o foratemercore
eu realmente achei que a comoção em torno do temercore fosse uma inocente galhofa de internautas espirituosos, devido a sempre engraçada e cativante estética de D.A. do curso de filosofia. mas aparentemente o lançamento de não apenas um, mas dois (!!) filmes que falam desse período ou simplesmente incorporam um léxico liberal supostamente irreverente e politizado muito característico dessa época, vieram mostrar que um barbudo do século xix estava certo: primeiro a história acontece como tragédia, depois como farsa.
digo com sinceridade que é difícil levar a sério uma das mobilizações públicas mais patéticas e vexatórias da nossa história. o temer só não saiu do poder, como conseguiu terminar um mandato de forma muito tranquila. daí em diante, deu um migué na pf pra nos anos seguintes anos ser um dos grandes fiadores políticos do governo Bolsonaro, que não só se reelegeu por um milagre chamado o capital político do senhor luís inácio lula da silva.
pra mim, a época do #foratemer é um fenômeno que mais se assemelha à incrível nostalgia de muitos marmanjos pela seleção brasileira de 2006. uma seleção celebrada por ter quase todos os maiores craques da sua época, mandar muito bem no pandeiro, ter uma camisa com cores bonitas (os parâmetros da seleção brasileira estão baixíssimo mesmo), um carisma estratosférico, mas que não fizeram o que realmente importa: levantar a porra da taça do mundo.
e os recentes dois trailers (ainda não tive a chance de assistir os filmes, mas quando possível vamos assistir sim, pra poder falar mais mal ainda), tem todo o climão dos anos 2016-2018 em que uma classe média esclarecida, performática de um esquerdismo que tenta ser festivo, que realmente achou que ia lidar com uma ruptura institucional gritando palavras de ordem em festival que o ingresso é mais da metade de um salário mínimo, fazendo selfie com brinco fora temer, sendo engraçadinhos com repórteres da globo ou achando que o essencialismo de movimentos identitários liberal importado dos estados unidos seria o suficiente pra revolucionar a nossa sociedade.
bom, não foi.
nada contra as mobilizações horríveis. a liberdade de expressão existe pra isso mesmo. mas será que vale a pena revisitar esse período patético e imaginar que foi tudo muito heroico?
acho que pra maioria das pessoas querem se apegar numa espécie de passado épico que nunca existiu, justamente pelo presente ser uma incrível merda. apesar do lula ter sido eleito, e ter dedetizado ao menos o palácio do planalto, o centrão está passando muito bem, obrigado. ainda não voltamos ao estágio subterrâneo do presidente sequer controlar o orçamento da união, mas né, pessoal, não parece que vai demorar muito para que isso volte a acontecer, especialmente pelo bocado de mobilização de quinta-coluna fervilhando por aí.
acho que uma galera realmente acreditou que ter ido a umas duas passeatas e ter feito um cartaz com um trocadilho do temer foi o suficiente de serviço cívico prestado à nação. e o pior é que não dá pra culpar a boa vontade de ninguém. a nossa cultura política é muito vazia mesmo. tirando os movimentos sociais, uns gatos pingados que participam da política partidária, as ongs que ainda não são fantoches de bilionário cretino, a população mal consegue se organizar pra sequer mobilizar uma obra no bairro sem precisar da imprensa pra expor político e gestor urbano o obrigá-los a prestar contas na tevê local. é tudo muito precário.
mas como eu sou uma pessoa bem maldosa, o outro palpite da crescente popularização dessa nostalgia (nomeada, inclusive, de foratemercore), talvez seja apenas uma reelaboração do passado feita por uma classe média ilustrada chata pra caralho que se vê enquanto uma enorme herdeira da esquerda festiva e se acha a última bolacha no pacote da militância.
uma galera meio policarpo quaresma com baixíssimo carisma e aura que quer reivindicar uma épica que simplesmente não existiu.
e, novamente, fazendo paralelo com o futebol, como já disse o doutor bilardo: para hablar hay que ganar. qual foi o legado de tanta masturbação política em rodinha de debate em bar de playboy estilizado como bar fuleiro?
pessoalmente, uma das maiores misérias dessa nação é gente querendo reivindicar uma série de grandes avanços em algumas pautas de costumes devido a página do quebrando o tabu no instagram. mas que grande resistência política essa gentinha está falando? celebrar todos os projetos de precarização e desregulação passaram com quase nenhuma dor de cabeça nos anos temer-bolsonaro?
pra classe média ilustrada tão progressista que vive de dar lição de militância em coluninha da folha de são paulo e videozinho pra supostos comunistinhas de apartamento, além da produção audiovisual um tanto quanto cafona e piegas, o legado da articulação política dessa época nos dias de hoje é pra cumprir, ainda que no campo da ficção, a profecia autorrealizável da clarice falcão, quando o bolsonaro foi eleito: o desejo de ser a oposição mais afrontosa que esse país já viu.
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