ANALISANDO O TINY DESK DO CA7RIEL & PACO AMOROSO
(ou: argentina e a arte que é supostamente ruim, mas que é boa)
na última edição, falei sobre alguns aspectos das eleições argentinas e queria avisar que, ao menos pra mim, foi muito pouco. lamentavelmente, posso passar horas, dias, semanas falando sobre os mais diversos aspectos da argentina, dos mais absurdos até os mais ternos. eu me reprimo pra, sei lá, não ser agredida em espaços públicos, mas reconheço que a parte argentina que habita dentro de mim me torna vulnerável aos grandes lapsos do ego de uma nação empenhada em deixar o narcisismo tomar conta do espírito e das mentes dos seus compatriotas (não importando o quão deplorável a realidade material do país esteja; o importante é o comprometimento total com uma realidade totalmente distorcida).
mas para além dessa previsível egotrip, é sério que não quero deixar uma impressão (tão) errada dos nossos (nem sempre) queridos vizinhos. já que escrevo isso um dia depois da morte do ex-membro do one direction ter cometido um enorme erro, que foi ter morrido na argentina. ele é um multimilionário que poderia ter morrido em qualquer lugar do mundo, mas infelizmente foi morrer num dos países mais caóticos possíveis. e, como o esperado, foi um festival de horrores.
não apenas pela alarmante facilidade de autoridades em serem compradas por veículos de imprensa que pagam em dólares pra divulgar dados sigilosos, o humor pouco sensível da população local envolvendo a rivalidade argentina-inglaterra no futebol (para além das reivindicações territoriais) e hábitos meio idiotas e inofensivos, mas totalmente incompreensíveis em qualquer outro lugar do mundo: na hora do corpo ser levado do hotel, os sujeitos presentes começaram a aplaudir a ambulância que se deslocava (a relação dos argentinos e os aplausos é complexa. está ligado não apenas destinado à celebração, mas pode ser usado como um coringa em qualquer momento que pinte alguma dúvida do que fazer). vale a máxima: argentina, se eu a defino, eu a limito.
esse texto é (supostamente) um comentário cultural sobre argentinidade e arte. confesso que a minha proximidade com o objeto de estudo não me ajuda nessa tarefa, já que quase me transforma em uma dona de casa metafórica falando pra não reparar a bagunça numa casa com uns três gatos laranjas e dois cães salsichas (reconhecidamente os animais domésticos menos inclinados em obedecer a ordens e empenhados em enlouquecer, ainda que de forma muito carismática, seus tutores) ou, um dos elos fracos no mundo das mulheres, que é a mãe de menino altamente condescendente em perpetuar uma criação patriarcal e daninha.
mas apesar desse comprometimento em relação ao meu objeto de estudo, não quero que todos amem os argentinos, até porque eles já se amam mais que o suficiente. e isso aqui está muito longe de ser qualquer tipo de apologia, mas devido a esses e vários outros episódios, ainda sinto que não quero reduzir essa pouco humilde nação a um presidente incel cuja única ocupação é fazer reformas ultraliberais pra destruir o resto do estado de bem estar social que insiste em existir e uma população que adora ser odiada por todo o mundo, independentemente de estarem errados ou não.
queria conversar com vocês sobre algo que os argentinos são bons de verdade (e que não é uma projeção egóica e resultado da grande imodéstia e soberba inerente a cada cidadão daquele país): fazer arte supostamente ruim, mas que é muito boa (da qual basicamente a maior contribuição argentina para esse tipo de expressão é a cumbia villera).
a cumbia villera é legal por n motivos, mas o desejo de causar horror nas classes médias e alta em geral é o mais sublime e que traduz um dos pilares da argentinidade e das classes populares, que é de não se importar em ser uma espécie de vilão, malcriado, grosseiro e rebelde. sem contar que uma das raízes da cumbia feitas nas villas é literalmente o punk rock contestador feito nos anos 90. não é música para os virtuosos. e apesar de muita baixaria, retratos da marginalidade, vícios, talaricagens, dentre outras temáticas, é liricamente muito interessante, cheio de poesia — além do som ser muito futurista e experimental, mas sem perder a malemolência. como diria o mala fama: puro ritmo, vino tinto y sustancia.
no futebol, que ocupa a centralidade de qualquer manifestação cultural argentina por excelência, podemos perceber essa tendência com mais clareza: é o doutor bilardo que guardava agulha no meião pra espetar os adversário dentro campo e os grandes momentos de ousadia e loucura no maior campeonato da fifa: maradona fazendo gol de mão e fingindo que foi tudo normal e a famosa água batizada que foi tomada pelo branco na copa de 91. ou poderia apenas falar sobre a existência de diego simeone por si só. não existem limites. isso pode parecer apenas falta de caráter (e meio que é mesmo), mas também é a marca da viveza criolla, uma espécie de jeitinho argentino, sem muito charme e simpatia, mas que foi (e é) um recurso, uma malandragem, pra desafiar com a ordem desde os tempos coloniais. nós brasileiros conseguimos ainda disfarçar tudo com um humor & leveza, mas ser meio canalha sem muito constrangimentos, mas com um bocado de carisma, é algo muito argentino.
(obs.: o messi é realmente uma falha na matrix argentina. os fatos que comprovam essa tese é que ele só ganhou a copa do mundo quando se aproximaram mais intimamente gente não apenas de caráter duvidoso, rodrigo de paul, mas pessoas legitimamente transtornadas mentalmente, como dibu martínez)
e pra falar sobre essa forma de rebeldia, mas num contexto musical, vou falar da edição do paco e cat7riel no tiny desk, que viralizou não somente no mundinho hispanohablante, mas também entre os gringos em geral.
a sessão é divina. mostra a MAGIA e o PODER da música ao vivo, o que possivelmente levou a todos que se interessaram em explorar o som deles estarem decepcionados com as gravações originais, que são ruins mesmo….
mas são ruins de um jeitinho muito especial!!!
drogas y psiquiatras, más swing que sinatra
ca7riel e paco amoroso integram um duo que ganhou notoriedade na cena cena urbana argentina (que é basicamente a cena do rap, trap, eletrônica e do revival do raggaeton lá pro final dos anos 2010s). os dois são expoentes mais “alternativos” dessa cena que é uma das maiores da américa latina, que tem outros grandes nomes como bizarrap, cazzu, duki, paulo londra, nicki nicole, thiago pkz, milo j., que se consolidaram em vários mercados para além do argentino, usando uma abordagem mais comercial. na cena local, ca7riel e paco são artistas mais experimentais e que buscam referências mais diversas do que o eixo estados unidos - porto rico. ao lado dos dois, temos excelentes nomes que nem o trueno, wos e dillom que buscam na própria música argentina influência, em especial no rock e pop. existe também nessa cena urbana uma série de artistas mais ligados à cumbia, como l-gante, la joaqui, el noba (rip). apesar dessas diferentes influências, a formação dessa galera nessa cena é muito parecida, já que se deram em competições de freestyle (locais, regionais e nacionais), além do uso da internet como o maior veículo de divulgação e um público muito jovem que é o que consome majoritariamente esse estilo.
em relação ao ca7riel e paco, eles se destacaram pelo seu trabalho ser muito fora da caixinha mesmo. eles são loquitos lindos, mas que ganham o público no carisma e na zoeira. existe todo um trabalho estético que não se limitam ao som, mas também nos visuais. em uma cena que se tornou cada vez mais monótona pela busca de satisfazer um público amplo da patagônia até o sul da califórnia, a maioria em geral está jogando de forma muito segura, se apoiando nos clichês do gênero e buscando um som mais genérico possível e consequentemente, se tornando cada vez menos autênticos. no entanto, ca7riel e paco sempre estiveram se arriscando, mesmo que isso não fosse necessariamente bom numa dimensão comercial mais ampla.
mas além dessa coisa de serem doidinhos, a grande especificidade do paco e cato é que eles já estavam no mundo da música antes da cena urbana estourar na argentina. eles eram membros de uma banda de rock progressivo e viram na ascensão do trap/raggaeton um modo de se inserir no mercado e poder viver como músicos. basicamente, eles meio que cansaram de ser pobres — o que é um sentimento muito legitimo e poderoso. ao embarcar na moda do trap que é um ritmo popular entre os mais jovens, puderam ter um pouco de dignidade material e cumprir o sonho de poder viver de música e parar de passar perrengue por aí. e eles falam disso de uma forma muito honesta e direta sobre essa transição. vendidos sim, mas hipócritas? jamais.
até que nesse início desse ano, numa linguagem dadodollabesca, eles “traíram” o movimento, dessa vez não do rock, mas da própria cena trapper experimental. eles foram gravar em miami, num estúdio podre de chique, que é o lugar mainstream do mainstream da ~latin music~.
o baño maria (2024) é o primeiro álbum de estúdio dos dois, voltado para o grande mercado. e é uma enorme farofa mesmo. que claramente não foi recebida pelo seu público mais tradicional de forma efusiva por ser uma versão muito mais convencional da sua produção até então e das letras, a maioria algo que dá pra perceber que não são só simplórias, mas a maioria pode ser percebida até com alguns elementos semi-paródicos, em oposição aos projetos solos (el disko, do cato e saeta, do paco). nas entrevistas espalhadas por aí, dá pra notar a dor quase física dos dois pela culpa de lançar algo muito genérico. o que, pessoalmente, me ofende. enquanto apreciadora de música ruim, amei absolutamente tudo.
o álbum é muito divertido, tem muitos elementos interessantes dos trabalhos anteriores, apesar de obviamente mais polido pra que possam chegar ao grande público
pra mim, é muito engraçado o genérico que eles produzem seja em geral melhor do que a obra da vida de muita gente da cena urbana que foram hypados até nos estados unidos (estou falando com vocês, maluma e j balvin). eu sei que não é muito difícil (já que a indústria da música urbana latina é basicamente o agronejo cultural do mundo hispanohablante — miami é o goiás deles), mas que consolidou um modelo de negócios que solapa as cenas locais e deixa tudo muito igual, ruim e basicamente sem nenhum tipo de inovação criativa que seja minimamente relevante há um tempinho, sobretudo quando estamos falando de música feita pra ser popular.
por isso eu entendo a surpresa do que gerou o set no tiny desk, uma vez que foi lá que eles puderam ter um espaço pra exercer a liberdade pra trabalhar uma visão artística mais autêntica que deixou evidente a enorme lacuna do que eles tem o potencial de realizar e o que um engenheiro de som da sony os mandou fazer.
ao adaptar toda a música deles, de base eletrônica, pra uma versão acústica, ficou muito explícito as virtudes e a visão artística que já estavam sendo explorado nas carreira solo dos dois. essa apresentação deixou evidente um enorme domínio técnico, uma sensibilidade musical singular, noção de estética, personalidade, carisma e humor que é central nas figuras do ca7triel e paco e que é cada vez mais difícil encontrar por aí.
o ca7riel, é um artista completo e muito impressionante mesmo, queridíssimo da galera dinossaura da música argentina, porque ele faz de tudo; e tudo muito bem. e a parceria com o paco é muito orgânica, não só porque eles sejam amigos de infância, mas porque eles se complementam alquimicamente que nem o noel e liam gallagher. mesmo não aportando tanta técnica que nem o ca7riel (mesmo também sendo instrumentista), o paco traz um clima de marotagem devido a ser um short king de 1,20m de puro carisma, um babyface letal e atitude de chico malo.
mesmo que todas as músicas usem os estereótipos mais manjados do jovem da cena urbana (drogas, talaricagem, foder no pelo, linguajar chulo em geral, materialismo exacerbado, doutrina protestante da prosperidade, hedonismo animalesco, misoginia), podemos perceber que existe um esforço enorme pra agregar alguns elementos não usuais da cena, e que realmente irritam muita gente. eles não são queridos por uma grande parte do público, muito possivelmente pelo apelo à boiolagem numa dimensão performática, sem contar o clima de broderagem fora do sigilo, num gênero marcado pela necessidade de ser uma grande machão.
eles forçam o exagero, ambiguidade, a estranheza e um relativo mau gosto pra poder desenvergonhadamente chamar atenção não apenas pra si, mas pra muitas vezes ridicularizar a própria indústria (e a si mesmos). enquanto tem gente querendo sinalizar grandes virtudes inexistentes, eles mesmos estão se chamam de gigolôs, ao refletir sobre a própria condição e as incoerências para poder chegar ao grande público.
existem uma série de pegadinhas espalhadas pelas letras, que demonstram que apesar de uma relativa superficialidade, eles sabem muito bem o que estão fazendo. mas a questão lírica fica nesse ambiente de quase-paródico, nem se compara com o trabalho visual, em especial com as produções audiovisuais, que são CINEMA 🚬.
e nesse tiny desk, o trabalho visual, de estilização não é apenas muito evidente, mas muito interessante também. em especial, a intenção que eles tem em confundir o público, de tirar uma onda com a nossa cara mesmo. essa aura de trickster que é comum aos dois, é uma característica muito importante desde o tempo em que faziam trap: é muito difícil identificar o que é sério, o que é brincadeira. é um abraço no contraditório, no mau gosto, naquilo que é duvidoso.
a camiseta usada na sessão do tiny desk pelo paco, é um exemplo. de primeira você vê o maradona, mesmo que ele não seja o maradona????
é a foto de um ator interpretando o maradona, num filme do paolo sorrentino, youth. a escolha de alguém travestido de maradona não tem apenas a ver uma referência do maior símbolo de argentinidade possível, mas dessa noção de performatividade. e também de um contexto mais biográfico, em que fala da próprias dificuldades legais pra poder tirar um visto pra ir gravar em miami, ou da galera da banda ir até washington pra gravar esse abençoado tiny desk (na camiseta dos integrantes da banda, a estampa é o visto de cada um). sem a própria história do maradona com o estados unidos, recheada por confusões e muito barulho: depois de ser humilhado mundialmente sendo levado pelas mãos pro antidopping por uma enfermeira no meio do campo em 94, o maradona que estava limpo de drogas pesadas, foi retirado e suspenso do futebol, pela presença de efedrina. desde então não conseguiu mais o visto pra entrar no país, não só por assunto de drogas, mas também somado aos posicionamentos políticos e por aí vai.
mi gente.... latino (?)
agora vou falar sobre umas reflexões malucas, que basicamente são algumas coisas que me chamam a atenção na recepção de cato e paco pelos gringos e praticamente, uma tentativa de calar as vozes da minha cabeça fazendo freestyle sociológico nesse espaço virtual.
no mundo da música urbana do mundo hispânico, existe uma estandardização muito pouco sutil da indústria fonográfica de como o produto latino deve ser. e não somente a uma homogeneização ligado à linguagem, em especial, a supressão de sotaques pra poder tem um alcance mais amplo ao apagar qualquer regionalismo, que é basicamente a necessidade dos artistas cumprirem as exigências de um bisneto de algum imigrante hispânico ou o neto de alguém que perdeu um latifúndio na revolução cubana, que acha minimamente aceitável que até um espanhol e italiano se encaixem nesse rótulo de latino.
o que claramente não faz sentido para nós, pessoas normais, que sabemos que o que se consolidou “latino” deriva de latino-americano e não de uma categoria étnica inventada por um americano de sensibilidade cultural negativa.
essa discussão sobre o que é considerado latino ou não tem muito a ver com o crescimento da ~comunidade~ ~latinx~ nos estados unidos, para o completo desespero de um tataraneto de décima quarta geração de um protestante que embarcou no mayflower, um neto dos nazistas de alta patente repatriados na operação paperclip ou descendente de colono incestuoso que era plantador de batata na europa: a porção demográfica dos latinos não vai parar de crescer.
e é muito interessante quando rolam esses momentos de contato cultural devido a um crescimento demográfico, não apenas pelas demonstrações de racismo, mas pelo pânico do wasp médio e da caipirada usamericana em relação aos “latinos“, porque eles não sabem ler nenhum povo que não sejam nos próprios termos. eles são tão cegos pela supremacia racial que o esforço que o trump faz pra ser racista evocando um caráter étnico, que sequer se justifica ideologicamente: a designação de latino não se relaciona com um aspecto étnico ou racial, mas sim nacional, regional, cultural e histórico.
o problema, para além do culturalismo da eugenia, é que eles não sabem lidar com a forma com que nós, gente colonizada pelos ibéricos, lida com a questão da cultural — para bem e para mal. falar em miscigenação definitivamente não é um grande lacre sociológico nos estados unidos. eu admiro de verdade a noção de não romantizar a noção de hibridização uma vez que foi um processo de violência colonial, de gênero, racial, dentre uma infinidade de outras violências, mas também não dá pra simplesmente dizer que esse fenômeno se limite a esses aspectos.
desculpe, mas não dá pra pensar a realidade latinoamericana sem pensar na nossa capacidade de assimilar uns dez tipos de manifestações culturais e incorporar como se fossem nossas. vivemos há quinhentos anos, mesmo que não voluntariamente, numa cultura radical do remix. e entendo que seja meio chocante pra um estadunidese que um sujeitinho que vive em 📌xique-xique, bahia possa sair por aí fazendo base de trap como se tivesse nascido em atlanta, ou armar uma bandinha de pós-punk como se nada.
criativamente a contribuição dos latinos nos estados unidos sempre esteve atrelado a uma população marginalizada e minoritária, mas o mercado da música já estava nos avisando, seja com o tropical house ou posteriormente com despacito em 2017 e depois com o bad bunny que os ~latinos~ são um motor de inovação cultural e, consequentemente, uma pedra no purismo da hegemonia anglo-saxã da caipirada branca americana.
não houve apenas um revival de um reggaeton que orgulharia a carmem miranda com as frutas na cabeça, de uma forma de expressão que é mais um produto importação do que uma manifestação cultural minimamente espontânea, mas um crescimento da toda uma cena urbana em torno de várias figuras hispânicas, como la rosalía invadindo o mainstream em função da afinidade cultural, em especial os laços hispanistas ibero-americanos.
mas apesar de todo esse movimento de uma suposta valorização da música latino-americana e caribenha, ela é praticamente baseada numa uma visão sobre os latino-americanos que os estadunidenses querem nos empurrar; e que lamentavelmente, os artistas muitas vezes tem que se submeter.
por isso, não dá pra se surpreender ao observar diversas reações de estranhamento ao ver o material original do ca7riel e paco. para a surpresa de alguns, existem artistas que não precisam se escorar/fagocitar esteticamente sons tradicionais pra ter o mínimo de identidade cultural. o desencamentamento do baño maria, para além da expectativa devido à excelência que os músicos e coristas apresentaram belamente na apresentação ao vivo, tem a ver com a incapacidade de aceitar formas de latinidade que não sejam de uma comédia bananeira numa ilha paradisíaca com um general esquerdista autoritário.
por ser um álbum que explora vários ritmos contemporâneos do mainstream do mercado fonográfico latino-americano, feito por gente da cena independente de um país com 200% de inflação anual e alguns golpes de estado financiados pelos estados unidos, deve chocar mesmo o hipster médio consumidor do tiny desk ao descobrir que ninguém precisa sair vestindo com fruta na cabeça pra poder pertencer à comunidade latino-americana de forma autêntica.
por essa razão, eu realmente sinto que o ca7riel e paco deveriam dobrar a aposta e continuar entregando o pior que eles possam oferecer. apesar da possibilidade nula de que isso acontecer, porque eles realmente querem ganhar dinheiro (e espero de verdade que eles encham os bolsos até umas três gerações) acho que será uma enorme perda cultural se realmente se empenharem em agradar o mercado estadunidense ao fazer um som mais polido pra suprir a expectativa meia dúzia de latino taubaté e hipster que vai consumir por achar a música deles exótica.
e sobretudo, porque mesmo tendo um tempo de carreira de menos de dez anos, eles meio que provaram que podem fazer qualquer coisa que dê na telha: trap, heavy metal, latin fusion, indie rock (o cato originalmente é um metaleiro, o paco tem um single que podia ter sido lançado pelo mais popular rockstar do rock em español: andrés calamaro, e o saeta/el disko são a essência do que eles mostraram nesse tiny desk aos desavisados).
eu sei, é uma guerra perdida.
especialmente num contexto que a comunidade “latina” vem se tornando culturalmente expressiva e sendo inseridos cada vez mais epicentro da indústria do entretenimento, num país que pra eles o grande ápice de “latinidade” é a bunda gigante da jennifer lopez ou o pitbull — que vamos ser honestos, não possuem a transcedência pra quem é latinoamericano, que nem shakira e o luis miguel, por exemplo.
sem contar que pra mim o reconhecimento do cato e paco, para além dessas questões culturais, não é só muito satisfatório, pois sou uma enorme stan, mas é recompensador que eles estejam recebendo esse tipo de atenção internacional depois de todos os envolvidos da cena argentina mainstream se esforçarem excessivamente pra serem aceitos pelo mercado americano e meio que floparem. a cena argentina pra mim é a melhor do continente, estranhamente até mais interessante do que a brasileira, e já estava demorando pra algum tipo de reconhecimento por valorizar as influências dentro da própria história da música argentina e das suas múltiplas influências globais e do cosmopolitismo em buenos aires?
mas a minha alegria do reconhecimento dessa dupla, é dúvida, devido ao fato que os dois são basicamente isso aqui: dois palhaços.
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dois indivíduos totalmente engajados na pura e simples galhofa, criados a base da gostosa baixaria da televisão aberta argentina, assistindo novela brasileira e mexicana, viciado animado japonesa, tendo a shakira como referência de grande popstar, escutando kendrick lamar e tyler, the creator.
desculpem aos americanos que adoram os mais diferentes tipos de segregação cultural, mas o nosso repertório cultural é tão mais abrangente e esquizofrênico de um jeito que eles jamais vão poder nos entender.
não tenho muito orgulho de admitir, mas sou um tanto quanto apegada a um certo amadorismo da cena urbana argentina (apesar da minha condição etária ser geriátrica pra ainda gostar de música feita pra pibes de 20 anos, mas em geral eu coloco a culpa na influência das minhas primas e das minhas inclinações antropológicas pra isso). eu não apenas amo a rebeldia, criatividade e competência usando um número ínfimo de recurso que a galera do underground argento promove, mas a autonomia artística que é a reafirmação do espírito criollo, da picardia e rebeldia mesmo num contexto de encontro e absorção da cultura do outro.
como diziam os jovens, é tudo nosso.