se as primeiras levas do sertanejo foram marcadas por relatos da vida no campo, êxodo rural, causos, tragédias familiares, amores trágicos, traições, farras, dentre várias outras temáticas, dos anos 2010 pra frente trouxeram uma insuportável celebração da heteronormatividade top que se intensifica a cada ano.
é uma interminável trilha sonora feita pra gente que toma stella artrois em loja de conveniência de posto de gasolina, algo equiparável e deprimente quanto tomar cerveja dentro de um shopping center (sou alguém que cresceu em belo horizonte e respeito muito a instituição buteco; não pedirei desculpas pelos meus valores).
um repertório consiste em monótonas referências jurídicas, diários sobre bebedeira na balada e várias das mais pavorosas onomatopeias que o português brasileiro teve a infelicidade de produzir. e mais recentemente, uma celebração identitária, ufanista e neoliberaloide de quem saiu da roça e venceu dito por gente que muito dificilmente pegou uma enxada, fez inseminação artificial em alguma vaca ou plantou um tomate na vida, mas age como se fosse um dos mais sofridos bóias-frias.
o sertanejo clássico dos causos e relatos da comunidade rural do tonico e tinoco ou a alegria despretensiosa de um é na sola da bota é na palma da mão não existe mais (ao menos no mainstream) há tempos.
eu sinceramente não julgo ninguém que escuta sertanejo. não sou o ed motta pra fazer uma análise musical mirabolante enquanto tomo vinho francês sentada em uma poltrona do sérgio rodrigues. no entanto, toda a popularidade do sertanejo hoje não se deve apenas a propensão do brasileiro em gostar de música de corno ou a nostalgia rural de um país que se tornou predominantemente urbano há pouquíssimo tempo, mas a vitória de um avassalador lobby do agronegócio.
umas gentes com dinheiro e tempo sobrando que infelizmente são incapazes de viverem uma vida breguíssima de milionário em miami e decidiram torturar um país inteiro ao se tornarem agentes da indústria cultural no brasil financiando e montando esquema fordistas de pop stars sertanejos.
e eles não têm conseguido apenas promover uma renovação deveras higienista do próprio gênero (leia-se: apagar a influências indígenas, negras e campesinas do sertanejo) ou o whitewashing das políticas macabras de lucro e expansão que são indispensáveis para a existência do agronegócio no país, mas promoção cada vez mais explícita de uma agenda muito reacionária, culturalmente abestalhada que existe apenas pra solapar as diferenças regionais e transformar todos os espaços dessa nação em uma baladinha sertaneja bem meia boca.
o avanço cultural do neosertanejo é quase tão daninho quanto a expansão da fronteira agrícola no país. é uma uma ameaça a subjetividade do brasileiro médio que nem precisa tanto incentivo assim pra virar um tio reaça, sabe? apesar do notável conservadorismo canarinho, o ethos que marca a construção social do brasileiro possuía uma coisa muito católica e barroca de abraçar as contradições. algo que nos permitia ser uma nação muito pautada no pragmatismo, mas que ainda sim conseguia conviver com a diferença através da faceta velhaca e irreverente do nosso povo. sinto que o sertanejo contemporânero é uma definitiva caretização do nosso país.
O FAZENDINHA SESSIONS
é difícil ser good vibes ao pensar na fazendinha sessions, essa que foi mais uma descoberta tardia da minha vida. não é só uma cópia descarada do poesia acústica, mas uma enorme chacota pra qualquer um do cenário artístico feito por gente que já comanda o mercado fonográfico.
poxa, é triste ver um projeto que deu tanta visibilidade pra galera do trap e hip hop em geral se tornar um modelo usurpado por uma galera que sai por aí comprando rádios locais ou infestando o spotify e youtube de bot. sem contar os artistas multimilionários superfaturando show em cidadezinha de dez mil habitantes por conta de aliança com prefeito corrupto, sabe?
pessoalmente, estou muito longe de gostar do poesia acústica, mas eu respeito o projeto pois mostra que o pessoal do rap/trap manja muito de internet. além de ser um mecanismo de divulgação do trampo de uma galera, é também um espaço de renovação ao mostrar os novos nomes da cena. diga aí quais gêneros musicais nesse país possuem esse alcance e impacto? quase nenhum.
por isso, não é de se estranhar que os mecenas do agronegócio ao olhar o poesia acústica no youtube dificilmente não apontariam o dedo tal qual uma criança mimada falando que quer um igual também. e isso me irrita muito. desculpe se estou sendo uma otária, mas não tenho como não ficar putaça ao saber que a expansão de um gênero que já é hegemônico ganhou mais uma ferramenta para se infiltrar na já muito castigada mente do brasileiro médio. estamos totalmente domados pelas garrinhas culturais do agronegócio.
não é possível que ser trilha sonora de todas as lojas do comércio popular já não configure enquanto uma coroação nacional da popularidade incontestável? o top 50 do spotify não é suficiente? o que está faltando? o luan santana como headliner no rock in rio? a ana castela no meca inhotim? a quarta novela seguida com temática em torno de agronegócio no horário nobre da globo? sabe, não é como se eles tivessem muito a oferecer pro público e crítica pra querer tomar todos os espaços assim.
em geral, falar de algo relacionado a cultura no brasil é algo complicado e criticar é ainda pior. porque os artistas, em especial os populares, vivem com a corda no pescoço passando tanto perrengue que é até chato querer desmerecer qualquer pessoa ou grupo que se dispõe a batalhar em uma área um tanto quanto ingrata. por isso uma das minhas mais ridículas angústias é saber que vivemos em um país que sequer podemos achincalhar o teatro mágico pelo piegas, cafonas e horríveis que eles são.
a minha utopia? viver em um estado de amargura total por viver em um país que o acesso à cultura é tão democratizado que todas as piores bandas de temas circenses/meio hippies de boutique com fãs mais presunçosos recebam muitos incentivos da lei rouanet.
espero ansiosamente o dia em que todos os estudantes de cinema estejam empregados em produtoras independentes para que a globo jamais faça uma cinebiografia ou deixe o pedro bial dirigir um documentário novamente. vibrarei quando alguma socialite/escritora de classe média alta moradora de santa cecília faça um desabafo de como a flip está perdendo o charme por receber gente que não esteja portando uma ecobag da mubi pelas ruas de paraty. necessito que os bichos-grilos cirandeiros de higiene pessoal questionável sejam beneficiados por inúmeros editais pra promover a sua arte duvidosa e um tanto quanto constrangedora. quero poder apreciar gente do mundo corporativo desistindo do cotidiano constituído de brunch/cocaína/conferência motivacional picareta e indo pra são tomé das letras vender esculturas de duendes e do raul seixas em durepoxi pra se dedicar a sua verdadeira paixão: escrever artigos pra revista ufo.
é com esse brasil que devemos sonhar.
mas sério, não dá pra fingir algum tipo de surpresa com a completa falta de caráter e da ambição desmedida e predatória da galera do agro, uma vez que de um jeito muito maligno, esses artistas da terceira geração do sertanejo representam com excelência o meio em eles vivem: as entranhas do agronegócio.
enquanto geógrafa, digo com muita convicção e seriedade que nesse caso, o determinismo geográfico venceu. não havia a mínima hipótese que esse ambiente poderia proporcionar ao país uma forma artística minimamente decente, além de extremamente perigosa para a nossa percepção de brasilidade.
gestados nas insípidas paisagens da monocultura de soja, nas profundezas dos solos em processo de desertificação devido aos efeitos da cultura agrícola intensiva, na alma dos animais esperando a morte de depois de uma vida claustrofóbica num curral ou numa granja superlotada, nos lençóis freáticos contaminados de veneno e nos lucros que vão para acionistas fora do país (além do herdeiro mais babaca que você pode imaginar que exista).
como a regina duarte falou em 2002, eu tenho medo (e acredito que meus motivos são melhores do que os dela, já que ter medo de um operário que na época já havia sido abraçado pela elite financeira paulistana e usado botox sempre foi algo muito desvairado).
O NEOSERTANEJOPROLETARIAT
não quero chutar cachorro morto. sei que é muito fácil falar mal do sertanejo contemporâneo como um todo (e sendo uma hater é muito satisfatório também). tenho consciência que os neosertanejos só querem ganhar rios de dinheiro pra gastar com trocentas picapes, roupas feias, casas feias, pomada pra barba, minioxidil pra tentar não sucumbir à calvície precoce e pagar os mais caros advogados pra pagar o menor valor possível de pensão alimentícia dos quinhentos filhos que insistem em botar no mundo.
mas o que me impressiona em uma dimensão política é a associação de vários artistas com o bolsonaro. pessoalmente sinto que é algo para além de uma bajulação, um agrado pra tirar alguma vantagenzinha. não é só vincular a imagem em troca de que o imposto de renda atrasado seja perdoado, como o neymar fez, pedir a cabeça de algum fodido de algum funcionário público que multou alguma violação em alguma fazenda de gado ou sei lá, só aproveitar o café da manhã grátis quando o bolsonaro tocava o berrante em brasília. a ligação dos neosertanejos e o bolsonaro é uma identificação anímica.
o bolsonaro conseguiu capitalizar popularidade dessa coisa de ser um tiozão tosco da galera, um homem comum que come pão com leite condensado, churrasquinho com farofa e pingado de padaria. mas todo mundo sabe que é um teatrinho muito miserável feito por um sujeito que torrou o que pôde com o cartão corporativo, sem contar o estrago feito no palácio da alvorada. jamais esquecerei que juntamente da sua família buscapé do mal, arrombaram a adega e a despensa da alvorada depois de perderem as eleições, além das carpas presenteadas *ao país* pelo imperador japonês que foram mortas pra que a michelle bolsonaro roubasse um balde de moedas do espelho d’água (sendo que se essa senhora tivesse vendido as carpas, ela iria ter embolsado beeeem mais, já que o intuito era pilhar tudo mesmo).
é tudo muito baixo clero, sabe? e essa turma de neosertanejos opera nessa mesma frequência do bolsonarismo.
o neosertanejoproletariat são sujeitos que querem faturar em cima da vulgaridade do que eles acham que compõe o povo do campo, sendo que eles no máximo trabalhavam como grandes precarizados da agroindústria e apenas avançaram na cadeia alimentar pra poder explorar quem estiver na pior. uma turma que flerta de forma muito orgânica com a extrema-direita, supostamente se rebelando contra o imaginário rural do passado sedimentada na ingenuidade da imagem do chico bento ou da ignorância jeca tatu. eles se colocam falsamente enquanto genuínos representantes da cultura do homem simples do campo, como se a carreira não dependesse dos ganhos de algum latifundiário que possivelmente vai receber o prêmio motosserra de ouro das mãos da sônia guajajara.
a modernização do campo que ocorreu no brasil ao longo do século passado e nesse século deixaria um senhor industrial do século xix de pau duraço. não falo somente da concentração de renda e de propriedade, que seria escandaloso por si só, mas da mecanização quase absoluta que serviu não só a aumentar a produtividade, mas pra destruir qualquer garantia de organização coletiva e garantia de direitos trabalhistas. o pessoal do agro só emprega seres humanos pela única razão que eles (ainda) não têm como colocar todos como escravizados ou botar uma máquina pra fazer tudo. além de não colocar comida no prato do brasileiro, como estamos cansados de saber. quem faz isso (a duras penas) são os agricultores familiares, nada a ver com os babacas plantando soja até onde judas perdeu as botas pra mandar pra fora e ganhar em dólar.
por isso, esse discurso de quem saiu da roça e venceu, feito por uma gentinha que venderia até a mãe se pudesse, não é apenas uma apropriação de um discurso periférico em um contexto totalmente inadequado (a favela venceu, a favela chegou), mas a busca da legitimidade feita por um bando de gente que só quer ascender socialmente usando elementos tradicionais – que o próprio agronegócio se empenha de forma brutal em destruir há décadas. um bando de arrivista sem vergonha virando as costas pra suas raízes caipiras e negras, pra agradar os patrões, que são os latifundiários.
e se as gerações passadas do sertanejo tinham a grande influência das guaranías e do chamamé, nessa última década esse neosertanejo busca apagar por completo qualquer influência que não seja de um cowboy americano incestuoso e trumpista.
estão importando com orgulho e soberba os mais patéticos elementos do country estadunidense da mais tosca comunidade de white trash do arkansas que se negam a tomar uma simples vacina alegando que tudo é uma grande conspiração chinesa. gente que passa o dia dirigindo uma silverado bebendo cerveja com a bandeiras dos confederados pra ir dormir num trailer e usar algum tipo de anfetamina.
não podemos nos dar ao luxo de consolidar esse tipo de conservadorismo tão daninho para nossa frágil democracia.
O BRASIL PRECISA SER FELIZ DE NOVO
o quão perigoso se encontra a subjetividade de um país que coloca as suas forças psíquicas em um gênero que não tem nada a oferecer para além de um entretenimento um bocado duvidoso? se um dia o sertanejo foi a voz de gente do interior, da cultura caipira, hoje é só a trilha sonora pra pegação em balada com homens vestindo camisa polo e sapatênis e mulheres que possivelmente enfrentarão um corte químico na próxima sessão de descoloração no salão de beleza.
e além das questões estéticas, me mata a predominância do humor meio boomer, uma coisa que sua tia posta no facebook do sertanejo médio. um humor que só é possível de ser exteriorizado por alguém quem foi criado por uma avó que tem saudades da ditadura militar e de quando a noção de seguridade social não era universalizada. o humor hétero do casamento é uma prisão, quando na verdade estão garantindo serviço doméstico gratuito para a vida e como as mulheres são complicadas e instáveis, quando sabemos muito bem quem são as vítimas predominantes de violência doméstica. é o ápice do triste e doentio mundo héterosexual.
mas além dessas manifestações de heterotopismo, será que esteja pedindo demais da indústria cultural, em querer algo melhor? se é um crime querer bons trocadilhos, letras interessantes e o mínimo de perspicácia dos artistas, me considero presa então.
por muito menos o timbalada simplesmente lançava um jesuuuus desde menino é palestinoooo é palestinoooo e hoje essas amebas que ganham uma nota por show são meros fantoches de um latifundiário babaca sem o mínimo de autonomia pessoal pra expor alguma opinião que não irá agradar os patrões? a decadência é total.
faço um apelo: BASTA de barbárie cultural! o brasileiro merece um gênero hegemônico minimamente decente, galhofeiro e carismático e cheio de VIVEZA que realmente represente a sua gente!