VIDEOCLUB #1: PAST LIVES (2023) DIR. CELINE SONG
(ou: não consigo nem fingir que me importo muito com o sentimentalismo da classe média cosmopolita)
Este texto é parte da primeira edição do VideoClub, uma atividade de Clubstack.
Escolhemos um filme e escrevemos. Nessa edição, assistimos Past Lives (2023).
Participaram: @antoniotecuenta @r3b3li0n8 @barbarawenner @dianadocha @luciawa97 @dafne31 @dowrow @elplacerdenopertenecer @myrita @hgmarteen @marmioni @chiaradvd @eteiss @ayditoyorick @ivisg @egliescribe @tamara540477 @andreamarina @murmullosindiscretos @valentinamandel @joseoutsider @gilhdezv04 @maxbustamante @sofiamartinj @beamn @mafer724129 @augustopérez @mariadebordas
As inscrições estão abertas. Para participar, envie uma mensagem privada aos cordenadores: Augusto Perez y María Roques de Borda. Todxs são bem-vindxs!
sou alguém que acredita profundamente no valor das experiências únicas. há coisas que realmente só funcionam por ser uma novidade ou uma lembrança remota. às vezes, revisitar um lugar, uma ocasião, não somente tira o brilho daquele momento, mas pode diretamente ser a completa destruição de um sistema de crenças como um todo. é uma infância que talvez não foi realmente tão legal quanto você lembra que foi, uma relação passada que em microssegundos do reencontro dá pra lembrar quase todas as inconveniências do convívio. e ao reassistir past lives (2023) senti que a experiência foi bem menos legal do que eu me lembrava. o que é uma pena.
talvez o filme tenha muitas ambições e ao rever não senti que há muita substância. past lives talvez não seja esse grande monumento intelectual e complexo sobre o amor. e politicamente, talvez seja até careta pra uma obra que quer pensar sobre deslocamentos e memória no mundo contemporâneo. sem contar que tocou num ponto muito sensível das minhas fixações teóricas de consumo cultural: poxa, quem aguenta esse cosmopolitismo artístico afetado de uma certa classe média global no cinema? esse apelo a uma estética da quietude e do minimalismo do cinema independente americano que foi encapsulado pela a24 é realmente a única forma de fazer um cinema de prestígio? pra consumir cinema de “qualidade” estamos condenados a assistir filmes em que a experiência média em geral é sentir como se eu tivesse dobrado a minha dose de antidepressivos e o achatamento emocional ter batido de forma pesadíssima?
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gostaria de esclarecer que não tenho nada contra obras narcisistas e autorreferentes em geral. inclusive, adoro e me divirto horrores. tenho a plena consciência que todos somos extremamente ridículos e é inescapável o fato de nos darmos muita importância. estou literalmente escrevendo besteira num espaço pessoal da internet, sabe? o que não gosto é quando sou convidada a um mundo que parece ser muito profundo e sensível, mas que é uma excelente desculpa pra alguém fazer um grande tratado sobre o seu próprio lifestyle ou exibir referenciais teóricos mais gastos que as articulações do joelho do ronaldo fenômeno. por favor, celine song, faça a sua viagem narcisista cinematográfica de um modo generoso pra que todos possamos aproveitar também!!!
até porque a celine song tem muito pra falar: de ter vivido a vida entre três países, e ter construído uma carreira e uma família em território estrangeiro e de ter se tornado uma estrangeira, de ter se casado com alguém fora da sua cultura. daí o que ela realmente fez em past lives foi falar foi de um web namoro falido com um companheirinho da infância que realmente conseguiu constranger o seu casamento muito maduro e exemplar de quase uma década.
para além dos grandes dilemas do passado emocional de nora, não consigo parar de pensar de que esse filme seja na verdade apenas uma grande reafirmação de valores enlatados de um cosmopolitismo vazio de sentido de uma decadente classe média global que não consegue se enxergar para além de uma solene estética da contemplação e uma constante reafirmação do próprio status social. eu sei que essa imensa frase é um tanto quanto insuportável, mas: a) eu sou de humanas b) adoro histórias de deslocamento porque a humanidade se construiu a partir delas e c) longe de achar que o filme precise fazer algum tratado social, mas como qualquer coisa que saia da mente de um ser humano, sempre há algo analisável aos olhos de quem quer ver.
o filme se vende como um drama/romance tendo o como eixo o reencontro de nora com hae sung, mas o que vi em grande parte da trama é a celine song celebrando a própria trajetória de imigração como algo que poucos alcançam, no caso dela, para além do talento e da ética de trabalho exemplar, ela ainda encontrou o amor. a jornada cosmopolita de nora saindo da coréia do sul pro canadá, e, depois, pros estados unidos, não é nada mirabolante, muito menos dramática. ela herda o pragmatismo da sua família: são eles que, primeiramente, rejeitam a vida na coreia do sul e a vida no oriente pra buscar mais oportunidades na respectiva área de atuação. a adaptação nunca é fácil, mas nora desde muito cedo já entendeu que precisa sempre ser obstinada se quiser cumprir suas ambições. de um jeito bem estranho ela se coloca como uma imigrante ideal. e é uma pena que ela não assume isso sem vergonha, especialmente porque a visita de hae sung reforça todas as suas suspeitas sobre si: ela realmente não nasceu pra levar uma vida que a limitasse. ela veio ao mundo pra se autorrealizar e mostrar ao mundo isso. e a coreia do sul não era esse espaço, e o canadá também não. o lugar que ela pôde mostrar toda sua potência foi justamente os estados unidos. o país que tortura a humanidade importando uma triste mentalidade de excepcionalismo.
para além de um muito normal e esperado choque de culturas, o retrato de hae sung não é necessariamente o mais generoso. especialmente se for alguém que supostamente ela teria um enorme afeto. ele não é apenas o seu amor antigo, mas é um símbolo da vida que nora deixou quando seus pais saíram do seu país natal. para além dele ser legitimamente um pobre coitado por acreditar numa conexão por mais de duas décadas sem uma justificativa que não seja a nostalgia (nada contra, pra ser honesta), hae sung é uma enorme inconveniência não apenas afetiva, mas social. o modo de vida dele é totalmente absurdo não só pro marido de nora, arthur, mas também para nora. ela já está bastante ocidentalizada e ainda que possua um olhar mais elevado sobre essas diferenças culturais, não é necessariamente menos reprovador, ainda que ela queira esconder isso.
hae sung é desajeitado, não fala inglês, quando jovem não quis ir para os estados unidos e pertence a uma classe média sem muitos luxos e sem perspectivas filosóficas muito elevadas. ele mesmo conta que não ganha muito dinheiro, que terminou um relacionamento porque não se sentia em equidade com a parceira (sobretudo materialmente). a viagem pra nova iorque, é um desatino da nostalgia e do apego ao passado, que ele se deixou levar num momento de crise ou como forma de aceitar algo de uma vez por todas (entender porque ele e nora não deram certo? encerrar o vínculo de verdade? não sabemos). e isso não poderia ser mais diferente de nora que não tem a mínima vocação de se sujeitar ao tempo do outro, porque ela está ocupada criando uma vida pra si.
e mesmo que nora tenha um olhar quase infantilizado e até encantado em relação a hae sung, há algo de obscuro não apenas da falta de intimidade e ligação real entre os dois personagens já que essa conexão precariamente justificada no roteiro pelo conceito budista in-yun, que nos final das contas só serve pra mascarar os verdadeiros motivos da desconexão. o que impediu nora e hae sung de ter uma relação de que poderia se materializar, não tem muito a ver com o cosmos, mas sim aspectos sociais que são convenientemente ignorados ao longo do filme.
a família de nora não tem nada a ver com a família de hae sung, mesmo que da compartilhem a nacionalidade e voltassem juntos da escolinha. existe aí uma busca por usar o conceito de nacionalidade como infalível como unificador identitário que não dá conta de explicar a complexidade dessa relação, mas eles sempre estiveram em mundos separados. e é engraçado, que é justamente na escola em que eles tiveram essa história comum. esse aparato do estado que mesmo nascido da cabeça doentia dos militares prussianos no século xix, de vez em quando nos dá uma pequena ilusão de ser um instrumento de igualdade, coletivismo e cidadania. os pais de nora não são conservadores como os de hae sung e a migração em si foi um processo totalmente desafetado: era uma necessidade, sempre foi pro melhor. em oposição a esse universo familar de nora, os pais de hae sung são apresentados mais austeros, tradicionais, conservadores e simplórios — assim como seu filho. do outro lado, nora até o seu nome ela pôde escolher: a nova vida de nora é uma enorme uma vitória da agência moderna.
os encontros online de nora e hae sung na juventude são motivados mais pela curiosidade e lembranças passadas do que um vínculo que existe de verdade. a ligação entre eles não são frágeis apenas numa dimensão de conexões técnicas (plataformas virtuais e obviamente a conexão à internet que é necessárias pra isso), mas quando nora percebe que não há disposição para que esse encontro seja mais do que platônico, ela não hesita em encerrar o vínculo e seguir em frente, mesmo que sofra por isso. ela sabe o que é prático e o que não é. o que não acontece com hae sung: ainda há ilusão e ressentimento em relação a nora. ela é alguém se consegue se desvincular, enquanto ele vive possivelmente atormentado por algo que não chegou a se concretizar.
outro aspecto interessante do filme justamente o impacto no casamento de nora que causa a visita de hae sung. mesmo que o marido esteja sendo uma pessoa muito empática a tudo que está acontecendo, o conformismo que vem de um espaço afetivo muito nobre de respeito ou ele só não quer ser o vilão dessa história de amor entre nora e hae sung? ele confessa a segunda opção, mas é impossível não nos empatizados com arthur — o que é totalmente normal, porque geralmente sempre empatizamos com o corno da história (ainda que um corno de caráter platônico e anacrônico).
me revolta também um pouco o argumento que arthur usa ao se sentir alheio a vida da própria mulher. quando ele começa a choramingar que tem medo de não ser tão especial pra mulher assim como ela é pra ele, e utiliza até uma cartada acadêmica um tanto quanto limitada pra justificar um muro permanente entre eles. olha, legal você achar que o idioma possa ser a única forma de se conectar a alguém, mas isso não só uma teoria dentre várias outras sobre a linguagem? isso está longe de ser um argumento de verdade. os linguistas russos não escreveram calhamaços em rigorosos invernos, guerras, prisões e perseguições políticas de pra mostrar que a linguagem é algo mais além do que só o idioma? sem contar que, meu amigo, você vive com essa mulher há mais de sete anos. você compartilha germes com ela. e você ainda realmente acha que ela é tão inteligível assim? e já que ele é um escritor, supostamente um intelectual, ele não teria um argumento minimamente melhor? ou no mínimo uma perspectiva mais poética sobre essa questão?
estou falando de gente que estudou em lugares de prestígio, supostamente muito letrada, que se esforçou muito pra chegar nesses lugares de excelência. esse é o momento pra você exibir a sua erudição, sabe? ainda ouso a dizer casamento de nora e arthur me deprime porque a dimensão de contrato hiper pragmático talvez seja mais evidente do que afetiva e é reforçado o tempo inteiro. não acho que eles são daqueles casais que se odeiam, uma vez que eles parecem que são excelentes roomates, mas há uma distância e não só na questão do idioma, mas que vai pra debaixo do tapete como qualquer conflito de verdade pra iluminar um dilema que jamais existiu.
mas o que mais me incomoda de forma central é a celebração até boba de um estilo de vida que supostamente quer ser muito despretensioso, de um multiculturalismo que no final é só consumismo e fetichismo de paisagens e ocupar espaços de prestígio e de poder de forma geral. a oposição de imagens entre coreia e sua vida nos estados unidos, deixam evidente que a vida dela é muito mais elegante, plural, interessante. não quero aqui ser moralista em relação a celine song, apesar de uma relativa futilidade e enormes momentos de autoelogios (ela se colocando juntamente com o marido na pose da famosa capa da rolling stone com yoko ono e john lennon é uma interessante momento de uma egotrip que deveria ser mais explorada). longe de mim negar o direito dela que ela se gabar as consequências pessoais da sua própria perspicácia e trabalho, da sua relação que possivelmente é motivo de inveja para muitos (e que ela quer que seja). ela atravessou não só limites geográficos, mas culturais e sociais. no entanto, pra além do filme ter sido promocionado como uma fábula afetiva, ganharia muito mais se ela soltasse a falsa modéstia talvez teríamos momentos mais complexos e de honestidade.
espero que as próximas obras, possamos ver mais ousadia de celine song, porque ela claramente é uma boa cineasta e é mil vezes mais interessante quando assume sua própria vaidade e contradições identitárias ao invés de encarnar alguém que se sente dividida por dois homens, por duas culturas, por duas cosmologias, quando ela nunca esteve dividida, em primeiro lugar. ela sempre soube o que ela quis: a si e a vida que leva com arthur.
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